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Adérson Omar Mourão Cintra Damião Professor Doutor do Departamento de Gastroenterologia da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP) Membro do Grupo de Doenças Intestinais e do Laboratório de Investigação e Pesquisa em Gastroenterologia (LIM-07) do Hospital das Clínicas da FMUSP
1. Introdução As proteínas representam 10-15% das calorias diárias alcançadas através da dieta ocidental. Da mesma forma que no caso dos hidratos de carbono e gorduras, a maior parte das proteínas ingeridas (90-95%) é digerida e absorvida ao longo do trato gastrintestinal, restando muito pouco a ser excretado nas fezes (1). Tal fato reflete a grande capacidade do organismo de digerir e absorver os vários constituintes da dieta e, ao mesmo tempo, antecipa a repercussão danosa que pode ocorrer quando existe comprometimento acentuado nas funções de digestão e absorção. Também proteínas endógenas oriundas das secreções digestivas (ex., saliva, sucos gástrico e pancreático, bile) e da descamação epitelial são hidrolisadas e absorvidas (reaproveitadas) através da mucosa intestinal (1).
2. Digestão das proteínas A digestão das proteínas inicia-se no estômago por ação das pepsinas, um conjunto de proteases sintetizadas pelas células principais (ou zimogênicas) da mucosa gástrica. As pepsinas são secretadas sob forma de precursores (zimógenos) denominados pepsinogênios. A exposição à acidez gástrica ativa estes precursores, transformando-os em elementos ativos (pepsinas). As pepsinas são denominadas endopeptidases, por romperem ligações internas das proteínas. Embora a proteólise gástrica possa ter alguma importância no recém-nascido, no adulto sua relevância é pequena, uma vez que pacientes com acloridria ou gastrectomizados ainda conseguem manter adequado nível de digestão e absorção de proteínas (1). Assim, a digestão protéica que ocorre no duodeno por ação das enzimas pancreáticas assume papel fundamental para o aproveitamento das proteínas. A chegada do alimento no duodeno promove a liberação de colecistoquinina (CCK) e secretina. A CCK estimula o pâncreas a produzir as enzimas pancreáticas. Paralelamente, relaxa o esfíncter de Oddi e contrai a vesícula biliar. A secretina, por sua vez, estimula a secreção de bicarbonato pelo pâncreas, o que favorece a manutenção de um pH ideal para a ação das enzimas pancreáticas (6,0-7,0) (1). A alcalinização duodenal inativa as pepsinas, mas favorece a ação das proteases (ou peptidases) pancreáticas. Cinco potentes proteases pancreáticas já foram descritas: tripsina, quimotripsina, elastase e carboxipeptidases A e B. As três primeiras são endopeptidases e as duas últimas são exopeptidases (rompem ligações terminais das proteínas). As proteases pancreáticas, ao contrário da amilase e lipase e, semelhantemente às pepsinas, são secretadas nas suas formas precursoras. A enteroquinase (ou enteropeptidase), presente na borda em escova do epitélio intestinal, provoca inicialmente a ativação do tripsinogênio, convertendo-o em tripsina. Esta, por sua vez, ativa as demais enzimas e inclusive o próprio tripsinogênio. O produto final da proteólise luminal é uma mistura contendo aminoácidos (30%) e oligopeptídeos (70%) contendo entre 2 e 8 aminoácidos (1). A etapa seguinte da digestão dos agora chamados oligopeptídeos envolve a ação de peptidases localizadas na borda em escova dos enterócitos. Como no caso das oligossacaridases, as peptidases são sintetizadas no retículo endoplasmático rugoso e transportadas em vesículas até a borda em escova do enterócito (1). A ação integrada das proteases e peptidases gera aminoácidos, dipeptídeos e tripeptídeos (1). 3 Absorção de aminoácidos, dipeptídeos e tripeptídeos Durante muito tempo pensou-se que, à semelhança do que acontece com os hidratos de carbono, cuja absorção se dá exclusivamente através dos monossacarídeos, as proteínas só seriam aproveitadas se transformadas em aminoácidos. De fato, existe um transporte ativo de aminoácidos, boa parte dependente de sódio (1). No entanto, em meados dos anos 70, foi identificado um sistema ativo de transporte de di e tripeptídeos, independente de sódio, porém dependente de hidrogênio (1,2), denominado PEPT-1. Sua ação ocorre em sintonia com a bomba de Na+/H+, que retira o hidrogênio da célula, trocando-o por sódio. Os di e tripeptídeos, uma vez no interior da célula, são convertidos em aminoácidos por ação de peptidases citoplasmáticas (prolidases, dipeptidase e tripeptidase). Os aminoácidos formados deixam a célula por difusão passiva e facilitada em direção ao sangue portal. Uma pequena quantidade de di e tripeptídeos (5-10%) também alcança a circulação (1,2). A descoberta do transportador de di e tripeptídeos ensejou uma série de pesquisas envolvendo dieta enteral à base de oligopeptídeos (oligomérica ou semielementar), que levaram às seguintes conclusões (1,2): a) a absorção de aminoácidos é maior e mais rápida quando eles são oferecidos sob a forma de oligopeptídeos (di e tripeptídeos); b) misturas de oligopeptídeos, quando ingeridas, levam a níveis plasmáticos maiores dos respectivos aminoácidos; c) não existe competição, como no caso dos transportadores de aminoácidos; d) maior conservação de energia metabólica e maior retenção de nitrogênio com dietas oligoméricas; a retenção de nitrogênio chega a ser 16 vezes maior que a observada com dieta à base de aminoácidos (elementar ou monomérica); e) a ureagênese é menor com dieta de oligopeptídeos; f) de maneira geral, a dieta à base de oligopeptídeos, quando comparada à de aminoácidos, promove maior ganho de peso, maior incremento na capacidade total de ligação do ferro, estimula a absorção de sódio e água no jejuno, restaura os níveis de pré-albumina, transferrina e colesterol (2,3); g) maior resistência do transportador de di e tripeptídeos quando comparado com o de aminoácidos em situações adversas e de comprometimento intestinal tais como: jejum, desnutrição, deficiência vitamínica e doenças intestinais (ex., doença celíaca, doença de Crohn, linfoma etc) (1,2); h) melhor osmolalidade da fórmula com oligopeptídeos (em geral isosmolar) quando comparada com a de aminoácidos, que pode chegar a 910 mOsm, o que, invariavelmente, gera diarréia (4); i) os oligopeptídeos restauram a normalidade da microcirculação, recompondo a pressão coloidosmótica (5); j) os oligopeptídeos modulam a ação da insulina/glucagon, favorecendo o anabolismo protéico e reduzindo a gliconeogênese (2). Todas essas características e vantagens acima descritas delinearam o espectro de indicações das dietas à base de oligopeptídeos que inclui, em linhas gerais: síndrome de má absorção, pacientes com perda excessiva de albumina (enteropatia perdedora de proteína) com diarréia e hipoalbuminemia e pacientes hipermetabólicos (ex., queimados, trauma etc) nos quais a utilização/retenção de nitrogênio e diminuição da ureagênese são aspectos cruciais (2). No Quadro 1 estão assinaladas as principais indicações para as dietas à base de oligopeptídeos (2,6). Quadro 1 – Principais indicações para uso de dietas enterais à base de oligopeptídeos (oligomérica) (adaptado de Brinson et al) (2) Síndrome de má absorção/Enteropatia perdedora de proteína Doença celíaca Linfangiectasia intestinal (primária ou secundária) Doença inflamatória intestinal (ex.: doença de Crohn) Isquemia Enterite actínica Enterite auto-imune Doença enxerto-hospedeiro Linfoma, DIPID (doença imunoproliferativa do intestino delgado Gastroenterite eosinofílica Enteropatia pelo HIV Síndrome do supercrescimento bacteriano Síndrome do intestino curto Situações hipercatabólicas/Paciente crítico Queimado Fístulas Choque séptico Transplante Trauma Miscelânea Caquexia cardíaca, pancreatite crônica, hipoalbuminemia aguda kwarshiorkor-like, fibrose cística, pós-operatório de grandes cirurgias, alimentação de transição pós-nutrição parenteral
4 Aplicações clínicas das dietas à base de oligopeptídeos O reconhecimento de que o transportador de di e tripeptídeos é mais eficiente que o de aminoácidos, aliado à baixa osmolalidade das soluções de oligopeptídeos e ao fato de que esse transportador resiste mais em situações de lesão intestinal, tornaram as dietas oligoméricas a escolha de eleição em situações com comprometimento da função absortiva intestinal (2). Abaixo resumiremos os principais trabalhos com dieta oligomérica:
1. Pacientes críticos – Em trabalho com pacientes críticos, internados em UTI, a dieta oligomérica foi melhor tolerada (menos eventos diarréicos: 1,38 oligomérica x 2,25 aminoácidos, p<0,02) que a monomérica (7). Da mesma forma, Heimburger et al, comparando a dieta polimérica com a oligomérica em pacientes internados na UTI, por 10 dias, observaram que houve aumento significante na produção de proteínas de síntese rápida (pré-albumina, fibronectina) somente no grupo oligomérico (p=0,02) (8). Nutrição enteral precoce com dieta oligomérica em pacientes submetidos a grandes cirurgias (ex., gastrectomia, pancreatectomia etc) foi bem tolerada e os níveis de aminoácidos de cadeia ramificada (AACR) pós-tratamento, particularmente leucina, foram mais elevados do que os obtidos com dieta polimérica (AACR oligom 414 x polim 361mmol/L, p=0,048; leucina oligom 134 x polim 115mmol/L, p=0,029) (9). Em pacientes vítimas de politraumatismo, a dieta oligomérica foi superior à polimérica no sentido de promover maior incremento na pré-albumina e transferrina, além de reduzir o tempo de hospitalização (10). Particularmente no caso de dieta à base de proteína do soro (rica em cisteína), esta parece ser superior àquelas à base de caseína no sentido de recompor a quantidade de glutationa (agente anti-oxidante, tripeptídeo rico em cisteína), comumente diminuída no paciente crítico (11). Semelhantemente, a dieta oligomérica foi superior à monomérica no pós-operatório, elevando mais a pré-albumina, a transferrina e o colesterol (3). Ainda no contexto do paciente grave e potencialmente grave, a dieta oligomérica mostrou-se eficaz na recuperação nutricional de grandes queimados (12) e de pacientes com pancreatite aguda (13).
2. Doença de Crohn – A doença de Crohn é uma doença inflamatória intestinal que pode acometer qualquer região do trato gastrintestinal, da boca à região anal e perianal. Contribuem para o estado de desnutrição os seguintes aspectos: redução da ingestão oral pela anorexia e estado inflamatório, perdas (sangue, nutrientes etc), complicações infecciosas com abscessos intra-abdominais e perianais, uso de medicamentos que interferem na absorção de nutrientes (ex., sulfassalazina reduz absorção de ácido fólico etc) e associação com doenças que levam também à má absorção intestinal como doença celíaca e colangite esclerosante primária. Algum déficit nutricional pode ocorrer em até 80-90% dos casos, principalmente os internados. Em crianças, a doença de Crohn interfere grandemente no crescimento e a abordagem nutricional é extremamente útil nessa população de pacientes. De fato, Polk et al administraram, de forma intermitente (3 vezes/ano, 4 semanas, por um ano), dieta oligomérica em uma população pediátrica com doença de Crohn e importante déficit de crescimento e verificaram aumento na taxa de crescimento, redução da atividade da doença, do consumo de corticóide e elevação da albumina e da somatomedina C (15). A proporção de remissão clínica com a dieta oligomérica alcançou até 75%, após 3 semanas, valor comparável ao obtido com corticóide (16,17). Royall et al, utilizando bioimpedância, demonstraram recuperação da composição corpórea (água, gordura e proteína) em pacientes com doença de Crohn após 3 semanas de nutrição com dieta oligomérica (18).
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